Cecilia Almeida Salles


Autora:Cecilia Almeida Salles
trechos do livro Gesto inacabado
Editora Annablume, São Paulo

Caminho Tensivo
“O tecido do percurso criador é feito de relações de tensão, como se fosse sua musculatura. Polos opostos de naturezas diversas agem dialeticamente um sobre o outro, mantendo o processo de ação.” in página 62
“É a tensão entre o que se quer dizer e aquilo que se está dizendo. Esta é, na verdade, a caracterização do ato criador, em que seu sentido mais geral, que estamos, aqui sustentando, na medida em que o trabalho da criação – um percurso que exibe tendências – está inserido na continuidade do percurso. A vagueza da tendência leva ao ambiente da imprecisão relutante. O processo de criação dá-se na relação entre essa tendência  e a mobilidade do percurso que está, necessariamente, inserido no fluxo da continuidade.
Trata-se, portanto, de uma perspectiva que vê a criação como um percurso direcionado por um projeto, inserido na continuidade do processo. É a tensão entre projeto e processo, deixando aparente o ato criador como um projeto em processo. “ in página 63
Lei e possibilidade
“Poderíamos afirmar , em termos bastante gerais, qua a criação realiza-se na tensão entre limite e liberdade: liberdade significa possibilidade infinita e limite está associado a enfrentamento de leis.
O conhecimento das leis seria a verdadeira liberdade. “Músicos, arquitetos, pintores, poetas ou quaisquer outros artífices não podem ter somente suas próprias técnicas sem estudar primeiro as leis básicas das respectivas artes.” in página 63




Percepção artística

“A percepção artística, como atividade criadora da mente humana, é um dos momentos em que se percebem ações transformadoras. O filtro perceptivo vai processando o mundo em nome da criação da nova realidade que a obra de arte oferece. A lógica criativa consiste na formação de um sistema, que gera significado, a partir de características que o artista lhe concede. É a construção de mundos mágicos decorrentes de estimulação interna e externa recebidas por meio de lentes originais.
Qualquer olhar já traz consigo uma perspectiva especifica e, necessariamente, não é idêntico ao objeto observado. No instante em que apreendemos qualquer fenômeno, já o interpretamos e naquele instante vivenciamos uma determinada representação.
A natureza já mostra essa mediação: a manifestação do arco-íris não depende só do sol e da terra mas também do homem, pois o arco-íris acompanha seu espectador quando este se movimenta. Daí cada um ver um arco-íris diferente. Cada pessoa, pelo modo como se coloca entre o céu e a terra e pela atividade de sua organização perceptiva individual do mar universal de cores, destaca uma forma que corresponde ao seu próprio arco-íris.
O processo de apreensão dos fenômenos envolve, portanto, recorte, enquadramento e angulação singulares. “ in Página 90


Processo de conhecimento

“O percurso criativo pode ser observado sob a perspectiva da apreensão de conhecimento que gera. A ação do artista é levada e leva à aquisição de informações e à organização desses dados apreendidos. É, assim, estabelecido o elo entre pensamento e fazer: a reflexão está contida na práxis artística. O percurso criador deixa transparecer o conhecimento guiando o fazer, ações impregnadas de reflexões e de intenções de significado. A construção de significado envolve referência a uma tendência. A criação é sob esse ponto de vista, conhecimento obtido por meio de ação.
O processo criador revela diferentes instantes cognitivos, envolvendo gestos os mais variados para se alcançar esse conhecimento.”


Conhecendo o mundo

Nas prestações de contas que o artista faz a si mesmo, são encontrados, em anotações, índices relativos à sua percepção. É o artista exposto a informação, recolhendo e acolhendo tudo o que de algo modo, lhe atrai.

A percepção artística, como já vimos, é o instante em que o artista vai tateando o mundo com olhar sensível e singular. Sondar o mundo é uma forma de apreensão de informações, que são processadas e que ganham novas formas de organização. A percepção é, portanto, uma possibilidade de aquisição de informação e, consequentemente, de obtenção de conhecimento.
A percepção é um modo de conhecimento não-controlado no sentido de que não se dá, na maioria dos casos, de forma consciente. Quando acompanhamos processos, deparamos com artistas imersos em seu momento histórico e no clima de seu projeto poético. Observam-se recorrências e tendências perceptivas: são modos de se aproximar da diversidade de estímulos e maneiras singulares de se apoderar de informações. Um artista plástico pode retirar a cor do mundo e outro, suas curvas e retas. São diferentes formas de representação do mundo.
As informações, por vezes, são apreendidas em nome de novas realidades em criação. Há outros casos de artistas que têm o hábito de registro independentemente de construções de obras específicas. Mas a necessidade de registrar, reter ou pôr em memória alguns desses elementos apreendidos é muito comum.
O artista encontra os mais diversos meios de armazenar informações, meios esses que atuam como auxiliares no percurso de concretização da obra e nutrem o artista e a obra em criação. Diários, anotações e cadernos de artista, por exemplo, são espaços desse armazenamento. As correspondências dos artistas, algumas vezes, cumprem esse mesmo papel.
Nessas diferentes formas de registro são encontradas ideias em estado germinal, reflexões de toda a ordem, fotos ou artigos de jornal. É claro que essa lista é praticamente infinita: cada artista em cada processo poderá fornecer um novo item. De um modo geral, pode-se dizer que o artista faz provisões: recolhe, junta e acumula o que lhe parece necessário. São registros verbais, visuais ou sonoros de apropriação do mundo, ou melhor, registros na forma mais acessível naquele momento.
O artista tem maneiras singulares de se aproximar do mundo á sua volta. Os cadernos de anotação guardam, muitas vezes, as seleções feitas pela percepção, ou seja, o modo como o artista apreende e se aproxima da realidade que o envolve. “
in Páginas 122 e 122

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